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Uma Narrativa Potiguara para o Ensino de Física: rompendo as amarras do livro didático¹

  • quarta, 22 de dezembro de 2021

A cultura, as histórias e narrativas de um povo, são propagados e ensinados informalmente, passadas de pai para filho, de avós para netos, em rodas de conversa e no cotidiano do povo. Dificilmente esse tipo de conhecimento é aprendido formalmente em escolas, pois não é comum que professores associem ao ensino da disciplina que lecionam. Isto nos leva a diferenciar a Educação Indígena da Educação Escolar Indígena.

 

A Educação Indígena envolve as culturas e os conhecimentos de cada povo, que são passados dos mais velhos para os mais novos no cotidiano, de acordo com a realidade e a vivência de cada comunidade. Já a Educação Escolar Indígena está relacionada à criação de escolas voltadas especificamente para esses povos, respeitando suas línguas, tempos próprios, culturas e especificidades em geral (LUCIANO, 2006, pp. 129-130). 

 

Assim, podemos tratar a Educação Indígena como os processos em que os conhecimentos são repassados e produzidos informalmente pelos próprios indígenas através de suas relações socioculturais e as histórias que são vivenciadas pelo povo e que são repassadas de geração em geração (SILVA, 2019). 

 

É preciso compreender a Educação Indígena a partir da sua amplitude e ao mesmo tempo das suas especificidades, aspectos que envolvem tanto os rituais, quanto as práticas do cotidiano das aldeias. Tais práticas são repassadas entre as famílias e dos mais velhos para os mais novos, pois, cada parte da cultura tem sua importância e os conhecimentos precisam ser propagados para que as novas gerações possam dar continuidade para que a identidade cultural dos povos indígenas seja preservada.

 

Já a Educação Escolar Indígena (EEI), conforme destaca Silva (2020), pode ser interpretada como sendo os processos em que os conhecimentos são transmitidos e produzidos por intermédio da escola, sendo esses conhecimentos indígenas ou não-indígenas, visando atender às demandas globais. A Educação Escolar Indígena é assegurada por lei no Brasil há mais de 30 anos, e tem seu marco histórico a Constituição Federal de 1988. De acordo com o artigo 210 da Constituição Federal de 1988, “o ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” (BRASIL, 1988).

 

Documentos oficiais como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDBEN – Lei 9.394/96), determina as especificidades da Educação Escolar Indígena, como: educação escolar bilíngue, recuperação das memórias históricas, a reafirmação das identidades étnicas indígenas, a valorização dos conhecimentos desses povos, dentre outros (BRASIL, 1996). Considerando a diversidade de povos existentes no país, as Diretrizes Curriculares da Educação Escolar Indígena (DCEEI) e o Referencial Curricular Nacional da Educação Escolar Indígena (RCNEEI) ainda destacam a multietnicidade, pluralidade, interculturalidade e diversidade como pilares centrais da educação escolar indígena. Neste sentido, o currículo precisa integrar conhecimentos universais e etno-conhecimentos de cada povo, preferencialmente através de temas transversais específicos para cada realidade.

 

Entretanto, apesar da legislação educacional ter avançado no sentido de apontar para garantia de políticas educacionais que visem interromper a imposição de um currículo uniformizador, que desconsidera as especificidades indígenas, do ponto de vista prático, ainda há muito o que fazer. Tais políticas ainda são muito limitadas e não dão conta de garantir processos educacionais que, de fato, dialoguem com os saberes indígenas em suas especificidades, que não sejam pautados num modelo de currículo uniformizador.

 

A superação de um currículo uniformizador por um currículo humanizado exige, conforme destacam Menezes e Santiago (2014, p. 50): “uma educação como prática da liberdade, fundamentada na teoria da ação dialógica defendida por Paulo Freire, que substitui o autoritarismo presente na escola tradicional pelo diálogo democrático nos diferentes espaços de vivências e de aprendizagens”.

 

A construção de um currículo numa perspectiva multiétnica e intercultural implica em recursos e materiais didáticos que tragam suporte aos professores e professoras que estão nas Escolas Indígenas. Porém, em termos de recursos e materiais didáticos, os diferentes povos não são devidamente representados, principalmente quando falamos do povo Potiguara, que habita a Paraíba. 

 

O capítulo de livro

 

Considerando essa lacuna para a efetivação da Educação Escolar Indígena nas aldeias Potiguara, elaboramos um capítulo de livro didático para o Ensino Médio adotando como ponto de partida uma narrativa potiguara. O capítulo – primeiro de outros que ainda pretendemos fazer – atende aos propósitos da Educação Escolar Indígena pois, ao mesmo tempo que recupera a memória histórica e valoriza a cultura ao enfatizar os conhecimentos potiguaras presentes no seu cotidiano e no seu lugar, iguala-os aos conhecimentos globais. Nesse sentido, em nossa abordagem buscamos não apenas resgatar e valorizar a cultura indígena Potiguara, como também, estabelecer um diálogo entre os conhecimentos indígenas e os conhecimentos científicos da Física. Isso foi possível mediante interpretações de narrativas e conversas entre os moradores das aldeias, que nos forneceram material e subsídio para a efetivação da nossa pesquisa. Além disso, nos forneceram possibilidades de (re)afirmação étnica dos Potiguara por intermédio da Educação Escolar Indígena.

 

Dessa maneira pensamos, o que da cultura dos Potiguara poderia nos auxiliar na realização dessa pesquisa? Após algumas conversas decidimos coletar histórias, contos e narrativas do povo e tentar estabelecer um diálogo com a Física nessas situações. Porém, isso atenderia ao objetivo de resgate e valorização da cultura? Acreditamos que sim, uma vez que tais histórias correspondem a ensinamentos passados oralmente, através de gerações, e refletem, ainda que parcialmente, os modos de ser e de pensar do povo Potiguara, caracterizando como Educação Indígena. 

 

E como fazer isso? De qual forma poderíamos fazer esse resgate associando a Física a cada situação descrita? Após um processo de investigação entre os anciãos e outros membros das Aldeias de Marcação/PB e Baía da Traição/PB, decidimos por usar, neste primeiro capítulo, a narrativa que fala sobre o Pai do Mangue. Relatam que se trata de um senhor que usa um chapelão que não deixa ver o seu rosto, fuma um cachimbo/cigarro que nunca se apaga e usa roupas de pescador. Para não irritar o Pai do Mangue, é necessário agradá-lo com fumo; só assim ele ficará satisfeito. O Pai do Mangue é tido para muitos indígenas e não indígenas como um ser espiritual e é o protetor dos manguezais.

 

Apresentada a narrativa, devemos problematizar a situação, ou seja, criar questionamentos e debates fundamentados na narrativa apresentada, conforme as ideias freireanas. Após a leitura da narrativa, geramos o debate para que o diálogo entre a Física e a narrativa Potiguara proposto em nosso objetivo possa ser alcançado. Para isso, estabelecemos a pergunta: “Por que a canoa baixou quando o Pai do Mangue subiu?”

 

Assim, analisamos esses conceitos levando em consideração os momentos com a presença do Pai do Mangue na canoa e o momento em que está apenas o pescador, algo que faria parte da atividade diária de um pescador, que é saber se a canoa vai flutuar ou não, e que é importante para a sua sobrevivência em seu cotidiano. Além disso, pode surgir outro questionamento: “Por que a canoa flutua no rio? Ou “Por que a canoa não afunda?” Esses questionamentos, diretamente relacionados à narrativa, permitem a introdução de conceitos como densidade, massa, volume, empuxo, etc.

 

Algumas aldeias situam-se próximas ao mar e aos manguezais, fazendo com que a pesca se torne uma atividade rentável entre os Potiguara. A pesca é realizada por alguns indígenas no mar que são “empregados” em embarcações de outros indígenas e também em embarcações de não indígenas. Em locais em que haja rios que são propícios para prática dessa atividade ela é realizada. A extração do marisco é realizada no mar, nos manguezais em ambientes chamados croas, que são ambientes mais rasos que muitas vezes ficam na areia quando a maré baixa. Portanto, relacionar a Física com a atividade da pesca, permite também abordar situações sociocientíficas e suas implicações para o meio ambiente. 

 

Ainda quanto à pesca, questionamos: como os indígenas pescavam? Partimos da hipótese que esses indígenas não tinham o conhecimento das redes e das linhas de pesca que são confeccionadas com seda e náilon, materiais que são artificiais. Como possível resposta, duas novas possibilidades surgem: (i) usando o covo, armadilha feita com palha do dendezeiro e amarração feita com cipó; e (ii) pescavam com lanças e arco e flecha à beira do rio. Da primeira possibilidade, abrimos caminho para explorar outra atividade econômica presente nas aldeias, o artesanato, e enfatizar quanto conhecimento um objeto carrega. Da segunda, conseguimos abordar conceitos de óptica, como índice de refração e refração e reflexão da luz. 

 

Ao longo de todo o capítulo, ilustramos com desenhos e fotos que representam o local originário da narrativa, o que facilita na identificação do estudante com o assunto abordado.

 

No final do capítulo, como forma de aplicação do conhecimento, inserimos cinco atividades. As atividades foram pensadas como problemas que implicam numa investigação prévia para serem resolvidas, estando de acordo com pressuposto de levar os/as estudantes a formularem hipóteses e desenvolver competências argumentativas, e não somente “resolver um exercício”. Além disso, fizemos correlação com problemas ambientais, que afetam diretamente o povo Potiguara e demandam uma postura crítica da comunidade. Um exemplo é o caso recente de poluição das praias (setembro-dezembro de 2019) com uma mancha de óleo de origem desconhecida, o que leva a importância de assuntos de forma interdisciplinar.

 

Algumas considerações

 

Do ponto de vista do Ensino de Física “regular”, este capítulo rompe com várias visões “tradicionais”. Primeiro que o foco está nos fenômenos, e diretamente relacionados ao contexto do estudante e do professor. Isto diferencia muito dos livros didáticos adotados de norte a sul do país que reproduzem apenas um cenário: aquele das editoras (SCHIVANI et al, 2020). Segundo, que os temas abordados – estática de fluidos e óptica – não são comumente considerados como pertencentes ao mesmo ano do Ensino Médio. Porém, ao associarmos o conteúdo ao fenômeno e não à grade curricular, mostramos o caráter não analítico dos conhecimentos científicos e a possibilidade de fazer relações interdisciplinares. Terceiro, que as estimativas e cálculos matemáticos, até mesmo as equações, são deduzidas como um possível modelo para explicar o fenômeno, e que foram assumidas a posteriori, não são “leis” a que a natureza segue. Ou seja, mesmo o indígena não sabendo as leis da Física, ele consegue pescar porque conhece a Natureza. Há uma intimidade e uma relação particular entre os povos indígenas e a Natureza. Eles sabem que isso é obra da natureza. Existindo as leis da Física ou não, a Natureza segue seu fluxo natural e que as coisas não dependem de lei alguma para sua ocorrência. Afinal, eles já ocupavam rios e mares muito antes dos filósofos naturais quererem, com suas leis da Física, ordenarem a Natureza.

 

Severino do Ramo Fernandes da Silva Neto

Mestrando em Ensino de Física

Mestrado Nacional Profissional em Ensino de Física – Polo UEPB/PB

Ana Paula Bispo da Silva

Departamento de Física – Universidade Estadual da Paraíba


 

Referências:

 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996). Brasília: Presidência da República, Casa Civil, MEC, 1996.

LUCIANO, Gersem dos santos. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

SCHIVANI, Milton; SOUZA, Gustavo Fontoura de; LIRA, Natália. Programa Nacional do Livro Didático de Física: subsídios para pesquisas. Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 42, 2020.

SILVA, Edson. Índios. Instrumento: Revista de Estudo e Pesquisa em Educação, v. 21, n. 2, 2019

SILVA, Sidnei Felipe da. Geografia Escolar nas aldeias indígenas Potiguara de Jaraguá e Monte Mór de Rio Tinto-PB. 2020.

MENEZES, M. G. D.; SANTIAGO, M. E. Contribuições do Pensamento de Paulo Freire para o paradigma curricular crítico-emancipatório. Pró-posições, Campinas, v. 25, n. 3, p. 45- 62, set./dez., 2014.

 

¹ O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.


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