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TransParente

  • terça, 20 de dezembro de 2022

Há muito queremos desmistificar aspectos sobre os quais temos refletido quanto ao papel da família na vida de pessoas trans. É que atuamos como escritoras e criadoras de conteúdo digital, com foco em acessibilidade afetiva e neurodiversidade. Na realidade, a ideia de abordar a transgeneridade veio da mãe, Selma. A questão, contudo, é que seu lugar de fala parecia limitado ao da maternidade. Afinal, a vivência era da filha, Sophia Mendonça. Foi desta maneira que surgiu a websérie e o podcast TransParente. Isso porque percebemos a importância dos aliados neste movimento de descolonização do conhecimento. É necessário, contudo, a consciência das interações e afetos que moldam o discurso de cada simpatizante à causa LGBTQIA+. Aliás, a obra TransParente documenta o processo da cirurgia de redesignação sexual da filha, como forma de afirmação de gênero. Esse procedimento ocorreu após Sophia Mendonça tornar-se a primeira mulher transgênero e autista a defender um mestrado no Brasil. Portanto, optamos por uma escrita polifônica neste artigo.

 

Acontece que, ao nascer, cada pessoa recebe uma designação pelo obstetra que possui de fé pública. A definição realizada pelo profissional restringe-se a uma visão binária do gênero. Ou seja, há apenas dois conceitos possíveis para o momento: feminino e masculino. Hoje, entretanto, já há base científica para percebermos variações possíveis e diversas entre ambos os polos. Por exemplo, há indivíduos intersexo que, mesmo com uma configuraçao XY, associada necessariamente ao masculino, não desenvolvem o pênis. Além dessas possibilidades biológicas, existe um leque de construções sociais responsáveis pela definição do que seriam os papéis do feminino e masculino. E, claro, há a percepção da própria pessoa de como ela se encaixa nesse sistema. Tal autoanálise, aliás, pode ser incongruente ao que foi designado no nascimento. Essas são as pessoas transgênero e nem todas elas possuem sofrimento psíquico associado a partes do corpo, por exemplo, que simbolizam fortemente o gênero contrário ao que elas se identificam. Para elas, basta ter a forma de expressão que consideram adequada.

 

Mas também existem casos em que a incongruência entre a autopercepção e a leitura social pode estar ligada a um prejuízo funcional na vida da pessoa. Este déficit cotidiano ocorre por uma sensação extrema de infelicidade com os códigos do corpo. Neste sentido, a cirurgia plástica chega à sociedade de forma crescente. Afinal, existem procedimentos que transformam o rosto de pessoas ou reconstroem órgãos perdidos em um acidente. Assim, podemos juntar uma necessidade orgânica das pessoas, com sua necessidade mental. Nesse contexto, surgiu a cirurgia de redesignação.

 

Infelizmente, as famílias ainda estão muito mal-informadas. Dessa maneira, a sociedade que não convive com transgêneros, torna-se muito mal-informada, também. Entretanto, Selma relata perceber a interação feminina de Sophia com a família e o mundo, desde a primeira infância. E quanto mais ela estudasse sobre o assunto, mais clara ficava a questão da identidade da filha. Desse modo, Selma descobre também, os caminhos para tornar melhor a qualidade de vida de Sophia. Certamente, uma mãe não mede esforços para isso. Mas, de uma maneira geral, o que as famílias fazem? Comentam: “Nossa, mas a estatística de assassinato de pessoas trans é muito maior. Além disso, a sociedade rechaça e não tem emprego. Então, a pessoa só tem um fim, um funil que a leva para a prostituição.” Isso é verdade, se e somente se, a família for a primeira a dar o pontapé nessa pessoa. Quando você nega a identidade de seu filhe e é a primeira a dar o pontapé, a sociedade, covardemente, se sente no direito e livre para xingar, taxar, julgar e condenar. Ou seja, se a pessoa for rechaçada pelos próprios pais, então, o que podemos esperar de outros setores da sociedade?

 

Na verdade, a filha não deixou de ser a filha. Dessa maneira, a responsabilidade de educar uma pessoa valorosa ao convívio social continua sendo a mesma. Assim, mãe e filha começaram a pesquisar de maneira conjunta e unida, o que ainda não entendem, não conhecem ou o que as desafia.

 

Claro, vivemos em uma sociedade heteronormativa e com ideologia cisheteropatriarcal. Ou seja, que valoriza a figura que acolhe a designação masculina ocorrida no nascimento. E mais que isso, esse viés atua no apagamento de outras narrativas de vida e possibilidades de existência. Esse apagamento ocorre justamente porque os detentores do discurso normativo dificilmente se abrirão para a possibilidade de estudar suas contradições tão naturais quanto problemáticas. E mesmo essa dupla, formada por uma mulher já na fase da maturidade e outra transexual, ambas autistas, reconhece sua posição social como mais favorecida se confrontada com outras experiências retratadas no podcast TransParente. Lá são encontrados relatos de mulheres que tiveram que se levantar solitárias para então, a partir dessa primeira ação, descobrirem seus aliados. Tudo ao custo de demasiada violência. Todas nós somos, hoje, acima de tudo, parceiras nessa trajetória de descobertas para sermos mais felizes e, assim, contribuir para a felicidade de outras pessoas também.

 

Escrito por Sophia Mendonça e Selma Silva

 

Sophia Mendonça é uma youtuber, podcaster, escritora e pesquisadora brasileira. Em 2016, tornou-se a pessoa mais jovem a receber o Grande Colar do Mérito em Belo Horizonte. Em 2019, ganhou o prêmio de Boas Práticas do programa da União Européia Erasmus+.

 

Selma Sueli Silva é criadora de conteúdo e empreendedora. É articulista na Revista Autismo (Canal Autismo) e Conselheira da Unesco Sost Transcriativa. Em 2019, recebeu o prêmio de Boas Práticas do programa da União Europeia Erasmus+.