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Produção científica: como mulheres e mães são diferentemente impactadas na era pós e pré-COVID-19

  • sexta, 01 de julho de 2022

Falar sobre paternidade, maternidade e produção científica é uma temática delicada. Mas, como mãe e doutoranda, penso que essa conversa seja crucial para termos uma breve dimensão de como esses dois importantes papéis da vida social- maternidade e paternidade- fortemente impactam pesquisadores e pesquisadoras de maneiras bem distintas.

 

Comecemos, então, por um fato atual. Em maio de 2020 e maio de 2021, pesquisadores estadunidenses do Science Opinion Panel Survey (SciOPS) perguntaram a 300 cientistas das áreas de biologia, engenharia e bioquímica, sobre os impactos da COVID em suas atividades de pesquisa. Quase óbvio dizer que todos os participantes foram impactados, principalmente por paralisações nas universidades, interrupções nos trabalhos em laboratórios e colaborações com outras/os cientistas.  Mas quando o foco da pesquisa é direcionado para a vida doméstica, os impactos são diferentes, com creche parental e educação virtual abalando mais fortemente mulheres e pesquisadoras/es no início da carreira científica. Dos participantes da pesquisa, 50% das mulheres e professoras/es assistentes reportaram dificuldades em se concentrar em atividades de pesquisa, porcentagem menor do que aquela encontrada para os homens (29%) e professores sênior (36%). Durante a pandemia, as mulheres tiveram muito menos tempo do que os homens para trabalhar em pesquisa, cenário que fica ainda pior ao se considerar mulheres com filhas/os. De acordo com uma pesquisa respondida por quase 3.500 brasileiras (Staniscuaski et al., 2021), mães e mulheres negras foram as mais afetadas em sua produção científica durante a COVID-19.  

 

Mas se parece que somente fatos não triviais são capazes de impactar diferentemente pesquisadoras e pesquisadores, outros estudos contemporâneos mostram que a desigualdade de gênero pode ser vista como estrutural no meio científico.  Pesquisas mostram que mulheres casadas e mulheres com filhos são menos propensas do que as mulheres sem filhos a passar de estudantes de doutorado para uma posição de trabalho permanente (tenure track position).  O mesmo estudo mostrou que, quando comparadas aos homens, as mulheres cientistas são mais propensas a permancer solteiras, ter menos filhos/as (or menos filhos/as do que o desejado), ter filhos/as somente depois de conseguirem uma posição de trabaho permanente, e a não participar de eventos familiares (Fox et al., 2016). 

 

Focando especificamente na produção científca, as diferenças permanecem- e são até mesmo gritantes em alguns casos.  De acordo com Ghiasi (2021), a ausência de colaborações de pesquisa, juntamente com os cuidados com as crianças, é o contribuidor primário para diferenças de gênero na produção científica. Quando esse fato é somado à baixa inclusão de muheres como co-autoras em colaborações de pesquisadores altamente produtivos, um círculo vicioso se perpetua com baixas produções de pesquisa e colaborações que, por sua vez, apresentam mais obstáculos para mulheres. Para se ter uma ideia, as mulheres estão envolvidas em menos de 30% do total de autorias científicas, sendo menos presentes em áreas de ciências exatas e naturais, como engenharia, robótica, física de altas energias, matemática e ciência da computação. Elas também são altamente subrepresentadas como autoras únicas (apenas 17% do total de publicações indexadas no JSTOR corpus) e na área de patentes, majoritariamente dominada por homens (Ghiasi, p.195-197). 

 

Finalmente, trago um último exemplo para endossar a desigualdade estrutural nas carreiras científicas. No estudo conduzido por Al-Nashif (2021), viu-se que, enquanto nas disciplinas de humanas e ciências sociais, mulheres são a maioria durante a graduação, quando o olhar é voltado para a pós-graduação, a diferença de gênero aumenta, com homens sendo a maioria a alcançar posições sênior nessas áreas. De acordo com a pesquisadora, isso também se deve ao fato de, normalmente, o início do doutorado coincidir com o momento no qual as mulheres desejam começar uma família, o que, também de acordo com Al-Nashif, não deveria ser um fardo, nem um fato a recair mais fortemente sobre as costas femininas. 

 

Todos esses números nos chamam a atenção para as imensas desigualdades em status, autoridade, e prêmios simbólicos que marcam os campos cientificos (Fox, 2016), mas também sobre a cultura científica, ou, nas palavras de Pierre Bourdieu, do habitus científico, revelando como as estruturas sociais criadas e mantidas no meio acadêmico são, muitas vezes, excludentes, racistas e sexistas. Adicionalmente, a institucionalização desse habitus científico contribui primariamente para a construção da mulher na ciência como não ideal, já que a primazia do trabalho no meio acadêmico deve se sobrepor às demandas familiares e vida pessoal. Por carregar fortemente a característica de competividade, o meio acadêmico é orientado para um alto desempenho, longas horas de trabalho e disponibilidade ilimitada, para o qual as mulheres não possuem tal perfil já que “seus interesses são naturalmente diferentes”, segundo os entrevistados da pesquisa (Bleijenberg, 2013). 

 

Falar de produção científica, portanto, é também falar e refletir sobre como a cultura científica está até os dias atuais embasada na meritocracia, enquanto ignora e nega a influência do meio social e cultural fortemente entrelaçados a essa cultura. As discussões sobre  desigualdade de gênero na ciência são necessárias por diversos motivos, não se limitando apenas a uma questão de justiça social, mas para a promoção e avanço da própria ciência. 

 


Autora Tatiana Zanon
Formada em jornalismo pela Unesp, doutoranda no Programa Individualizado (INDI) da Concordia University (Montreal-Canadá). Trabalha há mais de dez anos na Universidade de São Paulo (USP), atuando em comunicação e disseminação da ciência. Sua pesquisa de doutorado é direcionada à Igualdade, Diversidade e Inclusão em Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática, endereçando relações de poder e a marginalização de mulheres e minorias visíveis em livros didáticos de ciências.

 

 

Referências citadas no texto:

Staniscuaski, F., Kmetzsch, L., Soletti, R. C., Reichert, F., Zandonà, E., Ludwig, Z., ... & de Oliveira, L. (2021) Gender, race and parenthood impact academic productivity during the COVID-19 pandemic: from survey to action. Frontiers in psychology, 12, 1640.

Fox M. F., Whittington K. B., Linková M. (2016) Gender, (In)equity, and the Scientific Workforce. In Felt, U., Fouché, R., Miller, C., & Smith-Doerr, L. (Eds.). The handbook of science and technology studies. Cambridge: MIT Press

Ghiasi G. in Tajmel T., Starl K., Spintig S. (2021). Modelling the Human Rights Approach to Science Education. The Human Rights-Based Approach to STEM Education. Munster, New York: Waxmann. https://doi.org/10.31244/9783830992202

Al-Nashif in Tajmel T., Starl K., Spintig S. (2021). Modelling the Human Rights Approach to Science Education. The Human Rights-Based Approach to STEM Education. Munster, New York: Waxmann. https://doi.org/10.31244/9783830992202

Bleijenbergh, I. L., van Engen, M. L., & Vinkenburg, C. J. (2013). Othering women: fluid images of the ideal academic. Equality, diversity and inclusion: An international journal.