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Parentalidade, saberes tradicionais e acesso indígena à escolarização

  • sexta, 01 de julho de 2022

“Parentalidade” – de pouco usual à referência frequente nas discussões sociais, o termo passou a fazer parte da linguagem apenas na década de 1980. Segundo Gérard Neyrand, sociólogo e psicólogo francês conhecido pelas investigações sobre o tema, o conceito de parentalidade se liga, de forma geral, aos modos de ser e viver as relações entre pais e filhos.

Distante dessa abordagem centralizada nas figuras do pai e da mãe, as tradições indígenas no Brasil alargam o conceito de parentalidade e praticam a ideia de comunidade no cuidado com todas e todos. De acordo com a professora Leonice Mourad, do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, a parentalidade hegemônica carrega uma visão etnocêntrica, pautada na tradição ocidental, que negligencia saberes que compõem a própria diversidade sociocultural do Brasil. “Para os povos indígenas, não existe o ‘seu’ filho, existe o filho da comunidade. O filho pode sair dos olhos dos pais e ficar solto, livre e, ao mesmo tempo, protegido”.

Dados de 2020 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estimam em 1.108.970 pessoas indígenas, o que corresponde a cerca de 0,5% da população nacional. Uma parcela que vivencia processos familiares que compõem a própria memória do nosso país.

Mas, como o Brasil lida com esses saberes tradicionais? A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, prescreve tanto o ensino de História do Brasil que reafirma as matrizes indígenas, quanto a educação escolar indígena que considera sua identidade étnica. O Decreto 6.861/09, que trata da educação escolar indígena, prevê que a organização territorial escolar indígena seja promovida a partir da definição de territórios etnoeducacionais pelo Ministério da Educação, ouvidas as comunidades indígenas e a Fundação Nacional do Índio (Funai), entre outros órgãos. Já a Lei de Cotas (Lei 12.711, de 2012) prevê que 50% das vagas em universidades e institutos federais sejam direcionadas para pessoas que estudaram em escolas públicas. Desse total, metade é destinada à população com renda familiar de até 1,5 salário mínimo per capita e a distribuição por cor e etnia acontece de acordo com a proporção.

Na prática, existe um avanço no número de estudantes indígenas matriculados no ensino infantil, fundamental, médio, nas turmas de educação de jovens e adultos e na universidade. Comparando os dados gerados pelo Censo Escolar de 2005 e de 2020, houve um aumento de 50% de matrículas. No último ano, o Anuário Brasileiro da Educação Básica, levantou 250.884 matrículas em terras indígenas e 3.336 escolas em território indígena. Entretanto, no ensino superior, houve uma queda de 54,8% de estudantes indígenas no Exame Nacional de Ensino Médio (Enem), comparando os índices de 2021 e 2020. Os dados são do Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior (Semesp).

 

Fragilização sócio-cultural: a demanda de estudantes indígenas por coletividade

Entre os avanços e os retrocessos da inserção dos povos indígenas nos processos de escolarização do país, existem diversos desafios acerca da inclusão e legitimação da cultura indígena – inclusive, ligados à noção de parentalidade. “É preciso pensar a complexidade enfrentada pelas populações indígenas para adentrar nas universidades, assim como, o desafio das universidades para compreender essa outra racionalidade”, reflete a professora Leonice Mourad.

Exemplo dessa fragilização sócio-cultural, as moradias estudantis das universidades públicas no Brasil são espaços pautados na individualidade e na desassociação familiar do estudante, uma organização que contraria as expressões e saberes indígenas. Para Natanael Claudino, estudante de Pedagogia da UFSM e cacique da etnia kaingang, do Rio Grande do Sul, a entrada e permanência de indígenas nas universidades traz novas demandas ligadas a uma dimensão não escolar, não acadêmica. “Nós temos uma maneira própria de se organizar. Nossa organização escolar e familiar sempre é coletiva. O conhecimento nosso também é compartilhado”, relata.

Dialogando com a literatura acadêmica, uma pesquisa analisou o ingresso de mulheres indígenas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) durante o período de 2008 e 2016. Entre as 45 mulheres indígenas aprovadas no vestibular, pelo menos 26 foram mães durante a graduação, o que representa cerca de 52% do total de ingressantes (BRITO, 2016, p. 91). Nesse contexto, como ser estudante indígena e vivenciar a dimensão cultural e familiar em sua plenitude?

 

A Casa de Estudantes Indígenas: muita luta e pouco avanço

Por meio de ações afirmativas – atos que visam corrigir situações de discriminação e desigualdade ligadas à constituição histórica ou atual da sociedade – a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) são exemplos de universidades públicas brasileiras que buscam se abrir para a realidade dos estudantes indígenas. Uma das iniciativas que está em curso nas universidades é a Casa de Estudante Indígena (CEI), um modelo de moradia estudantil que tenta legitimar as tradições indígenas no espaço acadêmico.

Ainda em fase inicial, as CEIs nessas universidades são possíveis graças à luta dos indígenas por tratamentos mais dignos e à abertura dos gestores em integrar a diversidade estudantil. Roseni Mariano, estudante de Odontologia da UFSM e indígena da etnia guarani, participa dos movimentos de reivindicação da Casa de Estudante Índigena e compartilha como a pressão estudantil foi fundamental para dar início ao projeto: “em 2014, nós ocupamos a reitoria. E foi a partir dessa ocupação que conseguimos a aprovação do projeto da construção da moradia indígena. Projeto esse que nossas lideranças sempre lutaram com diálogos muitas vezes cansativos”.

Liderança nessa luta, Natanael acompanha o processo da CEI na UFSM há mais de 10 anos. Segundo o cacique kaingang, o projeto está longe de sua finalização. “A gente vem acompanhando a entrada e permanência dos estudantes indígenas desde 2011. Antes, outro cacique fazia isso. O principal é que foi uma demanda criada em conjunto. Hoje, temos um bloco de mais ou menos 100 lugares. O projeto, se for construído em sua totalidade, abrange 400 estudantes indígenas”, conta.

Hoje, a CEI da UFSM serve apenas para a moradia estudantil com alguns espaços de assistência familiar, mas Natanael e Roseni ressaltam que o projeto completo abrange espaços que contemplam a dimensão familiar, cultural e espiritual dos indígenas. “Sabemos que falta muito pra chegar o que o projeto prevê ou previa. Por exemplo, o projeto prevê um espaço para desenvolver dança indígena, um espaço de exposição de artesanatos, enfim, espaços importantes para que conseguíssemos manter um pouco da nossa cultura. Os desafios ainda são inúmeros”, afirma Roseni. “Eles (estudantes) tendo um espaço físico para se encontrarem e trocarem ideias e conhecimentos é importante. A gente sente falta disso. Os alunos indígenas se sentem em casa quando têm um parente indígena para conversar”, complementa Natanael.
 

Planta da Casa de Estudante Indígena da UFSM. Crédito: UFSM.

 

Na UFRGS, os movimentos atuais tentam retomar a CEI, que entre denúncias de preconceito por parte de outros estudantes, trazem as dificuldades dos estudantes indígenas que são pais e mães, já que o regulamento não permite a presença de crianças. Mais recentemente, em março deste ano, estudantes indígenas reivindicaram à UFRGS que um imóvel abandonado no Centro Histórico de Porto Alegre seja transformado em casa do estudante. Já a UFSC está no processo de discussão da CEI, pressionando a Reitoria da Universidade por condições mais adequadas para os estudantes indígenas. “É uma luta e continua sendo uma luta... é um processo contínuo e coletivo”, ressalta Natanael sobre seus aprendizados com a UFSM.

Bloco da Casa de Estudante Indígena da UFSM. Crédito: UFSM.

 

Estudantes indígenas da UFRGS ocupam o antigo prédio da Secretaria Municipal

da Indústria e Comércio, em Porto Alegre. Crédito: Deriva Jornalismo.

 

Estudantes indígenas debatem a moradia estudantil indígena na UFSC. Crédito: UFSC.

 

Apesar de inicial, as experimentações ligadas à Casa de Estudante Indígena movimentam mais questões sobre a inclusão de conhecimentos, culturas e sujeitos. “As famílias indígenas querem vir e passar uma temporada na universidade. Isso levanta questionamentos como ‘qual é o lugar da criança na universidade?’. Vamos criar creches? Como vamos proceder?”, questiona Leonice. “Eu sou casado, eu tenho meus filhos, mas eu não posso levar (para a universidade)... É o que acontece hoje!”, relata Natanael.

Para a professora, os estudantes indígenas precisam de moradias com a ideia de família e etnoconhecimentos ampliados. “Nos povos indígenas, a família e o conhecimento têm conceitos que se entrelaçam de forma muito interessante e se ligam à ideia de comunidade. Eles se dão nas relações, na figura do ancião e nos rituais de geração para geração. Para incluí-los, as universidades precisam ser espaços abertos, que constroem a inclusão a partir e com os estudantes indígenas”.

Natanael complementa, ressaltando a importância de ‘ser visto’ para legitimar as necessidades dos povos indígenas. “Os estudantes indígenas dentro das universidades precisam de visibilidade. É preciso mostrar que a gente tá lá! E eu digo que a própria universidade tem que fazer propaganda dos indígenas. Tem sala com um aluno indígena em meio a 40. Muitas vezes, ninguém sabe que existe um aluno indígena lá!”.

Visibilidade e inclusão que ensinam tanto sobre os laços afetivos no saber e no parentar. “Na percepção indígena, jamais existirá "individualismo". Nossas demandas sempre são discutidas num conjunto, mantendo a coletividade. E a família é isso”, finaliza Roseni.

 

 

Autora Dilian Caiafa com colaboração da professora Leonice Mourad

Membra da equipe de Comunicação Científica do Instituto REDI. É mestra em Inovação Tecnológica, pós-graduada em Processos Criativos e graduada em Relações Públicas e Jornalismo. Há seis anos, atua como analista de comunicação da Fundação de Apoio da UFMG - Fundep.

 

 

Referências:

Cerveny, Ceneide Maria. Família E... Narrativas, Filhos Nos Divorcios. Casa do Psicólogo, 2006.

Souza, Fernanda Hermínia Oliveira, and Cristina Fontella. "Diga, Gérard, o que é a parentalidade?." Clínica & Cultura 5.1 (2016): 107-120.

BRITO, Patricia. Indígena-mulher-mãe-universitária: o estar-sendo estudante na UFRGS. Porto Alegre, 2016.

https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101859.pdf

https://pindograma.com.br/2021/05/29/indigenas.html

https://g1.globo.com/educacao/enem/2021/noticia/2021/08/27/enem-2021-cai-negros-pardos-indigenas-inscritos.ghtml

https://www.ufrgs.br/humanista/2022/03/14/entenda-a-ocupacao-promovida-por-estudantes-indigenas-na-ufrgs/

http://flacso.redelivre.org.br/files/2013/02/1016.pdf

https://www.ufsm.br/2018/12/14/ufsm-inaugura-casa-do-estudante-indigena/

https://www.ufrgs.br/ppgas/br/atualizacoes-acerca-da-retomada-da-casa-do-estudante-indigena-na-ufrgs

https://www.ufsm.br/2022/05/13/familia-e-pertencimento/

https://cse.ufsc.br/2021/11/26/estudantes-indigenas-debatem-a-moradia-estudantil-indigena-na-universidade/

https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/02/lei-de-cotas-tem-ano-decisivo-no-congresso

https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2009/decreto-6861-27-maio-2009-588516-norma-pe.html