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Parentalidade na população trans/travesti: saúde e o direito à parentalidade

  • sexta, 01 de julho de 2022

Constituição Federal, art. 196 “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

 

Constituição Federal, art. 6 “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

 

Como dito nos referidos artigos da constituição federal, é direito de todos ter acesso à saúde e este é universal e igualitário, além de dar ao estado a obrigação de oferecer segurança,  assistência aos desamparados, entre outros deveres. Porém quando olhamos para a população trans e travesti no nosso país não é difícil enxergar que este recorte segue negligenciado pelo poder público e tal muitas vezes é endossado por parte significativa da população, tal percepção fica clara ao olhar quem foi escolhido para chefiar o poder executivo no país.

 

As pessoas trans/travesti tem necessidade únicas quanto ao atendimento medico, porem nada que fuja do ja feito com pessoas cis e mesmo assim elas passam por diversos constrangimentos ao procurar as unidades de saude, tanto publicas quanto privadas, isso se da pelo, despreparo e  preconceito instucionalizado/normalizado daqueles deveriam oferecer acolhimento a quem os procura, os profissionais de saude (todas as esferas). GOMES et al. (2021) ao analisar o acesso à saúde desta parcela da população pode constatar que, atitudes vexatórias (transfóbicas) como, olhares, piadinhas, desconsideração ao nome social, são comuns no âmbito do atendimento na saúde, o que impede de, por exemplo, a procura de homens trans (com vagina) por um(a) ginecologista ou a travesti e mulher trans (com penis) a um(a) proctologista.

 

A possibilidade da parentalidade, está diretamente ligada ao acesso à saúde, dentre outros setores e isso diz muito da perspectiva de alguém torna-se mãe ou pai, agora pense quando essa pessoa não consegue se sentir à vontade dentro deste ambiente, acrescente a chance dessa pessoa ainda não ter seus documentos retificados, constando em sua carteira de identificação, do sus ou plano de saúde, seu nome social e no documento (rg ou cnh) seu nome morto, coloque nesta situação um homem trans grávido, em que a equipe ao atende-lo, ao invés de tratá-lo como o pai da criança, refere-se a ele como mãe, ainda o tratando no feminino e repete esta ação transfóbica no momento do preenchimento dos papéis para a certidão do bebe, a chance deste tipo de trauma, afasta de muitas pessoas trans/travestis a perspectiva futura de ser pai e mãe (de maneira “natural”) (RÔLA; OLIVEIRA, 2020). Atualmente em casos de homens trans grávidos, não tem uma cartilha de acompanhamento do pré-natal, esforço para entender os efeitos do tratamento hormonal (caso o faça) tanto no pai quanto no feto ou até mesmo o impacto do puerpério neste homem (GOMES et al., 2021).

 

Mesmo a luz da justiça, que retirou a necessidade de colocar pai e mãe na certidão de nascimento, substituindo apenas por filiação, garante que as pessoas trans/travestis, sejam tratadas de acordo com o pronome a qual se identificam, a falta de respeito para com a individualidade do outro faz com a essa experiência que deveria ser única e prazerosa, se torne uma seção micro agressões, como no caso do casal transcentrado, Derick e Terra, onde ele daria a luz e seria reconhecido como pai e ela como a mãe, porém após uma troca turno, os episódios de transfobia começaram e perduram até o momento do preenchimento do DNV (declaração de nascido vivo) e certidão de nascimento. Durante seu texto, Presgrave; Hildebrand; Peixoto (2021), argumentaram como novidade o fato do casal ser trans e por isso seria compreensível a conduta dos profissionais responsáveis por atendê-los, porém desconsideram a falta do mínimo ao lidar com qualquer pessoa, principalmente no que tange o atendimento ao público, respeito, independente da situação, a identidade de ambos deveriam ser consideradas (Decreto nº 8.727), no caso do preenchimento do DNV, mesmo o hospital apenas seguindo o previsto em lei, cabia a eles conversar com o casal para entender a melhor maneira de lidar com situação, de maneira a não lhes causar desconforto.

 

Não há algo na legislação vigente que impeça a população trans/travesti de exercer seu direito à parentalidade, assim como não existe leis que impeçam pessoas negras de conseguirem emprego ou mulheres de ganharem o mesmo que seus pares homens, porém para todos os casos, de acordo com a sociedade hegemônica, qualquer outro que fuja a norma (leia-se norma, como homem branco hetero cisgenero), não é merecedor, seja lá do que for. 

 

 

Parentalidade sob olhar trans/travesti

 

Passabilidade: Ocorre quando uma pessoa trans ao ser vista, é reconhecida/considerada cis, ou seja, não qualquer questionamento quanto sua identidade de genero (ANGONESE; LAGO, 2018).

 

O modelo familiar imposto e tido como a norma é composto por um pai, uma mãe e filho, este molde leva em consideração apenas a cisheteronormatividade, invisibilizando outras composições familiares,  tornando-as a “outra” (em condição de oposição a norma), ou seja, algo anormal. Logo toda e qualquer formatação familiar, ao participar um casal, tende tentar se aproximar da norma, mas como isso se aplica a um casal transcentrado ou em que um seja trans? Bem a resposta pode ser simples, algo como, a mulher é a mãe e o homem o pai, correto, porém em casos que a pessoa teve seu filho antes de entender seu gênero e transacionar (não necessariamente fazer tratamento hormonal e/ou cirurgias), qual a relação entre ela e seus filho ou netos? E como um homem trans que para engravidar, precisa parar a terapia hormonal durante um tempo e tem passabilidade, lida com a possível perda da “figura” masculina moldada ao longo do tempo? 

 

As respostas para estes questionamentos não são simples, pois envolve algo muito complexo, a individualidade humana, o que leva a cada um a enfrentar tais situações de maneira única, porém, como vivemos em sociedade, muitas destas decisões tendem a ir de encontro com o já estabelecido e deve-se levar em consideração o fato deste grupo procurar receber respeito por sua existência. Angonese e Lago (2018), para entender como essas questões atravessam diferentes pessoas trans, conversaram com um pequeno grupo formado por 3 mulheres trans e 2 homens trans e pôde constatar que a percepção deles quanto ao que era família, assim como o papel que cada um deveria desempenhar nesta dinâmica, tendia a ser o mesmo de casais cis, ate mesmo a questão de quem deve ficar em casa e cuidar das crianças e as problematicas quanto ao papel de genero em uma relação amorosa/familiar cis-heterossexual. Nos casos em que as pessoas já tinham filhos antes da transição, eles tendem a serem mais compreensivos, mas no convívio em sociedade fica claro o desconforto em caso do uso errada do pronome em público, ao passo que na intimidade da família, o pai não se importa de ser chamado de mãe ou vice-versa. 

 

A figura materna está atrelada, a quem, engravida,  dá à luz, amamenta logo após o nascimento, no caso de pessoas trans, este papel seria atribuído aos homens trans (desde que o sistema reprodutor não intacto), mas este não seria visto como a mãe e sim como pai, e é neste ponto que muitos homens trans, principalmente mais velhos, escolhem não engravidarem, pois tal tiraria deles o “papel” de homem, por fazerem algo como dito exclusivo da feminilidade/mulher. 

 

Em sua autobiografia, Joao W. Nery, apresenta a conversa que teve com dois amigos sobre o assunto, “[...] Jamais faria isso, pois a maternidade é a maior prova da feminilidade. Sou e sempre fui homem. A minha luta foi para sair da prisão do corpo, jamais voltaria a ela”,  (NERY, 2011, p. 317) disse Amadeus e seu pensamento foi endossado por Darcy “até posso respeitar a decisão deles (homens trans que engravidam). Mas não me vejo numa situação dessas, por mais que seja um ato de amor. Não consigo imaginar um homem dando à luz! É tão intimamente associado à maternidade! Como Amadeus falou, acho o máximo da feminilidade” (NERY, 2011, p. 318), ja Nery acrescenta outra visão, apesar de não se ver engravidando “...fiquei feliz em saber que os trans jovens estão assumindo seus desejos, ousando mais na desconstrução do gênero, sem se sentirem ameaçados na sua identidade sexual” (NERY, 2011, p. 318).

 

 

Parentalidades e suas possibilidades

 

O corpo do homem grávido é um corpo ressignificado duplamente, por ser trans e estar grávido. É mais difícil para um homem trans engravidar, porque socialmente quem engravida é a mulher. Só que entendo que quem engravida é o corpo. E que ser homem ou mulher não está ligado na questão do genital e nem do fisiológico, está ligado à identidade. Portanto, o fato de um homem trans engravidar não vai fazê-lo deixar de ser homem por causa disso. Ao contrário, precisa ser muito homem para engravidar. É apenas uma condição biológica e fisiológica que o corpo do homem trans permite…” (PEÇANHA, 2015, s/p).

 

Mesmo diante das adversidades que implica ser/existir trans/travesti em nossa sociedade, ainda sim é possível exercer seu direito de ser pai ou mãe e constituir família com seu parceiro ou parceira. Vale ressaltar que a família vai além da configuração usual, cada um pode formar sua como bem entender, desde que haja respeito e amor entre os envolvidos.

 

 Como dito no início deste texto, não há lei que impeça uma pessoa que se identifica como trans, de ser pai ou mãe, assim essa pessoa pode escolher os métodos convencionais caso queira, como no caso de homens trans com útero íntegro, que pode engravidar seja por, doação de esperma, reprodução assistida, entre outros, assim como também de sua parceira, caso ela tenha penis ou tenha congelado esperma, antes da cirurgia de readequação de sexo e genero. Este é o caso de Roberto Bête, homem trans, em um relacionamento transcentrado com a tatuadora Erika Fernandes, que ficou grávido de seu primeiro filho, Noah, a evolução da gravidez pôde ser acompanhada por seus seguidores no instagram (@roberto_bete). No caso do casal, se Erika escolhesse ter a experiência de amamentar seu filho, ela poderia, isso por conta de um tratamento capaz de induzir a produção de leite, ele é comum em casos de adoção ou barriga de aluguel, foi testado, com êxito, em uma mulher trans no Reino Unido (THERRIEN, 2018). Barriga de aluguel também é uma opção a ser considerada.

 

Outra opção e a mais comum é a adoção. O processo de adoção em geral é demorado, moroso e burocrático, mas tudo isso vale a pena e no final do processo é possível entender o porquê de algumas burocracias ligadas a esta questão, o quão elas são importantes para garantir o bem estar da criança. Neste ano, Priscila Nogueira, conhecida pelo nome artístico de Pepita e seu marido Kayke Nogueira, receberam a notícia que o processo de adoção que teve início há 2 anos e meio atrás, teria um resultado positivo, assim Priscila, uma travesti, realizou seu sonho de ser mãe ,junto a seu marido, de um menino chamado Lucca Antonio, que lhe foi entregue semanas após ao nascimento. Durante todo o processo, Priscila conta que se sentiu acolhida e respeitada pela equipe responsável pelo processo (assistentes sociais e psicólogos) e se sente realizada, “Sempre consegui quebrar muitas barreiras mesmo como o preconceito morando ao meu lado, então hoje me sinto realizada em poder dizer para o mundo que sou mãe” (GARCIA, 2022).

 

Independente de qual seja sua escolha, ser pai ou mãe, ter uma família próxima do tradicional, sempre mantenha em mente que o importante é você ser feliz, no país que mais mata pessoas trans/travestis, existir é resistir, exista para si em primeiro lugar e valerá a pena.

 

“Mas não se esqueça, levante a cabeça, aconteça o que aconteça, continue a navegar.” (Serei A, Pajubá, Linn da Quebrada)

 

Autor Willian Machado

Membro da equipe de Comunicação Científica do Instituto REDI. É natural da cidade de Osasco, região metropolitana de São Paulo, graduando em Engenharia de Bioprocessos e Biotecnologia, na Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp Botucatu.

 

 

ANGONESE, Mônica; LAGO, Mara Coelho de Souza. Família e experiências de parentalidades trans. Revista de Ciências Humanas, [s. l.], v. 52, p. 1–18, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/revistacfh/article/view/2178-4582.2018.e57007. Acesso em: 9 jun. 2022.

 

FEITOSA, Giulliany Gonçalves et al. Parentalidade trans: novas formas de (r)existir. Anais XII CONAGES.Campina Grande: Realize Editora, 2016. Disponível em: . Acesso em: 09/05/2022 15:09

 

GARCIA, Gabryella. Pepita anuncia maternidade: “Muito orgulho de dizer que sou mãe”. [S. l.], 2022. Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/Cultura/noticia/2022/05/pepita-anuncia-maternidade-muito-orgulho-de-dizer-que-sou-mae.html. Acesso em: 20 maio. 2022.

 

GOMES, Mariana dos Santos et al. Homens transexuais e o acesso aos serviços de saúde: revisão integrativa. Research, Society and Development, [s. l.], v. 10, n. 2, p. e2110212018, 2021. Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/12018. Acesso em: 9 maio. 2022.

 

NERY, J. W. Viagem solitária: memórias de um transexual 30 anos depois. São Paulo: Leya, 2011

 

PEÇANHA, L. M. B Entrevista a Neto Lucon, 2015. Disponível em:  https://nlucon.com/2015/12/13/homem-trans-negro-leonardo-pecanha-diz-deixei-de-ser-objetopara-ser-ameaca/

 

PRESGRAVE, Ana Beatriz Ferreira Rebello; HILDEBRAND, Cecília Rodrigues Frutuoso; PEIXOTO, Renata Cortez Vieira. Pais que dão à luz: como o direito brasileiro regulamenta o registro dos filhos de transgêneros?. [S. l.], 2021. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1652/Pais+que+d%C3%A3o+%C3%A0+luz%3A+como+o+direito+brasileiro+regulamenta+o+registro+dos+filhos+de+transg%C3%AAneros%3F. Acesso em: 9 maio. 2022. 

 

RÔLA, Quize Cristina Silva; OLIVEIRA, Bárbara Raíssa de. O CORPO QUE HABITO: DESAFIOS DE GESTANTES TRANSEXUAIS NO ACESSO DIGNO À SAÚDE. Revista Direito e Sexualidade, [s. l.], v. 1, n. 2, 2020. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revdirsex/article/view/42561. Acesso em: 9 maio. 2022.

 

THERRIEN, Alex. Mulher trans produz leite e amamenta bebê pela primeira vez já registrada. BBC News Brasil, [s. l.], 15 fev. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-43078870. Acesso em: 20 maio. 2022.