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Parentalidade na ciência: para quem?

  • sexta, 01 de julho de 2022

1. Além de fundadora do projeto Parent in Science, qual é a sua atuação no universo acadêmico?

Eu sou bióloga de formação pela UFGRS, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Meu doutorado é em Biologia Molecular – sempre trabalhei com essa área de moléculas e plantas. Quando eu iniciei minha carreira como docente aqui na UFGRS, eu comecei a trabalhar com aquaporinas, que são moléculas que transportam água e outros outros compostos. Essa foi minha linha de pesquisa até 2018, quando o Parent in Science acabou crescendo muito mais do que a gente imaginava. 

 

E aí então eu fiz uma opção, eu fiz uma escolha de, neste momento, parar momentaneamente, não sei até quando. Eu acabei focando no Parent in Science e nos estudos que a gente tem feito a respeito de questões de gênero na ciência com esse olhar especial para a parentalidade. 


 

2. Contextualizando o Parent in Science, como foi a ideia de criar o projeto e quais são os seus objetivos?

O Parent in Science surgiu oficialmente em 2016. Hoje, eu sou mãe de três, na época eu era mãe de dois guris, e o projeto surge nesse contexto de eu não estar me adaptando ao que era esperado – o que eu esperava na conciliação de ser mãe e seguir com uma carreira de cientista.

Eu vinha numa ascensão da minha carreira e com a chegada dos guris, as coisas obviamente mudaram e as cobranças começaram. Eu não seguia mais o caminho que tinha sido traçado e, aí então, eu comecei a me sentir extremamente frustrada.

 

Eu comecei a conversar com pessoas próximas e a gente viu que era uma questão muito mais ampla, de um problema estrutural, de uma carreira extremamente rígida que não acomoda as mães e que, na verdade, não acomoda a diversidade de uma maneira geral. Então, o Parent in Science surgiu nesse cenário, com o intuito de trazer essa discussão.

 

Além disso, a gente queria propor ações. Nunca foi só a ideia de conversar a respeito, mas sim propor ações que obviamente foram mudando ao longo do tempo. Mas essa é a história do Parent in Science: vem de uma experiência pessoal minha e de um grupo que originalmente eram 7 pessoas - seis mães e um pai - que estavam passando pela mesma fase. E crescemos!

 

Hoje, o Parent é um movimento que conta com 90 cientistas de todo o Brasil. São 17 cientistas em um núcleo central e mais outros núcleos regionais, com representação em 18 estados mais o Distrito Federal. No total, estamos em 56 instituições de Ensino e Pesquisa de todo o Brasil com embaixadores e embaixadoras que são fundamentais para que a gente consiga com que as ações do Parent in Science façam sentido para as realidades de cada uma das instituições.

 

3. O Parent in Science realizou um levantamento no início da pandemia, em abril e maio de 2020, para compartilhar como a covid-19 afetou a produtividade acadêmica. O questionário foi respondido por quase 15 mil cientistas e abordou questões centrais para a discussão: gênero, raça e parentalidade.

 

Entre os dados, os docentes que afirmaram estar conseguindo trabalhar remotamente têm as seguintes representações:


 

4,1% mulheres com filhos

14,9% homens com filhos

3,4% mulheres negras com filhos

12,2% homens negros com filhos

4,4% mulheres brancas com filhos

15,8% homens brancos com filhos

 

O que você acha desses dados e do resultado geral do relatório?

Tudo que a gente viu no relatório não era novidade. A pandemia só exacerbou as desigualdades, porque a questão do cuidado se tornou muito mais drástica. As mulheres sempre foram as responsáveis pelo cuidado – antes da pandemia e continuam sendo agora. A questão é que as redes de apoio, quando existiam, foram completamente perdidas – a gente está falando de creches, outras pessoas, família. Isso se perdeu na pandemia e trouxe um impacto muito grande para as mulheres como um todo.

 

O que chama atenção, por exemplo, é que mulheres sem filhos submeteram menos artigos do que homens com filhos. Então, os homens pais foram menos impactados que as mulheres sem filhos. Essa é uma questão que sempre existiu! 

 

Por que esses dados são importantes e o que eles trazem de novo? Eles deixam clara a importância das redes de apoio, tanto pessoais quanto profissionais. Porque quando a gente pensa o porquê de as mulheres negras serem mais impactadas do que as mulheres brancas, a gente pode analisar as diferenças em relação ao cuidado. E, no nosso levantamento, as mulheres negras não disseram estar mais envolvidas do que as mulheres brancas com o cuidado de casa e com as tarefas domésticas, por exemplo. Isso mostra que a rede profissional também é uma questão importante – quem é que, trabalhando normalmente, conseguiu manter suas pesquisas durante aquele período intenso de isolamento? As pessoas que tinham grandes grupos, grandes redes trabalhando em conjunto. E aí entra a questão de raça muito forte, porque os dados mostram que as mulheres no geral têm uma rede profissional muito menor na academia e isso ainda é mais drástico para as mulheres negras que sofrem um isolamento profissional forte.

 

Os nossos dados deixaram bem claro a discrepância que a gente tem de gênero, que é influenciada pela parentalidade, mas que é principalmente influenciada por raça. Deixa muito claro que quando a gente está falando de diversidade na ciência, estamos falando de algo muito complexo, com muitas camadas, onde a gente não tem um único fator que vai influenciar, mas uma série de fatores que vão ter um impacto grande na população acadêmica em relação à diversidade de gênero e raça. E a gente sabe que os reflexos desse período vão ser sentidos por muito tempo.  Se a gente for olhar currículos, certamente a gente vai ver uma brecha muito grande que é influenciada por essas questões. Tudo que a gente sentiu nos anos de 2020 e 2021 vão ser refletidos nos nossos currículos em 2022, 2023 e assim por diante.

 

4. Em 2019, mulheres negras ou pardas estudantes do ensino superior, apresentavam uma taxa de frequência líquida de 22,3%, quase 50% menor do que a registrada entre brancas (40,9%). Os dados são discutidos no estudo mais recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2021. Como você percebe essa desigualdade no acesso à educação?

As questões da parentalidade, gênero e raça não são sentidas apenas pelas docentes ou por quem já está na academia. São problemas que acontecem em todas as etapas. Hoje, com as ações afirmativas e com todas as políticas que foram implementadas, temos uma mudança no perfil dos nossos graduandos e graduandas – em relação à raça e situação socioeconômica. As cotas tiveram um papel muito importante nesses últimos dez anos e mudaram um pouco o cenário.

 

Mas, não adianta simplesmente colocar essas pessoas dentro da universidade. Quando a gente está falando de mães, a permanência na universidade é algo sério porque vai envolver questões desde a disponibilidade de creches e escolas para as crianças – pouquíssimas universidades têm creches próprias, por exemplo – até as questões de disponibilidade de tempo, porque principalmente as universidades públicas ainda têm uma rigidez muito grande em relação ao horário. Muitos cursos são diurnos e são difíceis de conciliar com quem precisa trabalhar ou se dedicar ao cuidado com a família.

 

Então, desde o início – o ingresso onde as cotas e as ações afirmativas são extremamente importantes –, passando pela permanência desses alunos e alunas, até a progressão na carreira são diversas dificuldades. Não tem nenhum momento que a gente possa falar que os impactos de gênero, raça e parentalidade sumiram, muito pelo contrário: quando a gente fala de progressão na carreira acadêmica, a gente tem o efeito tesoura, onde mulheres hoje representam a maioria nos cursos de graduação, elas são igualmente representadas na pós-graduação, mas quando a gente avança na carreira existe uma diminuição muito grande na participação em cargos de liderança.


 

5. Recentemente, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) possibilitou a inclusão da licença-maternidade nos currículos, tanto das pós-graduandas, quanto das pesquisadoras. O que você acha do cenário de políticas públicas em favor da parentalidade na academia? Como podemos avançar?

Tivemos revoluções nesses últimos anos. Quando a gente iniciou o Parent in Science em 2016, a gente sempre falava que as mudanças eram para as próximas gerações, só que não imaginávamos que as coisas iam evoluir tão rápido! Várias políticas foram implementadas não espontaneamente, o que é importante deixar claro: até essa simples mudança no Lattes, ao incluir o campo de licenças e lá dentro ter a licença-maternidade, foi uma negociação de três anos com o CNPq. A gente fez a requisição em julho de 2018 e só em abril de 2021 é que foi finalmente implementado.

 

Políticas públicas são essenciais porque tudo que a gente está falando, na verdade, é uma questão cultural, uma questão social. A gente precisa que a sociedade enxergue o cuidado, enxergue as mães, as mulheres e as questões raciais de uma maneira diferente – isso precisa acontecer. Só que essas mudanças estruturais são extremamente demoradas e é aí que entram as políticas públicas.

 

O que a gente teve de avanço em relação à parentalidade? A questão do Lattes foi uma conquista importante, porque primeiro ela tira da invisibilidade... a gente sempre escuta ‘a sua vida pessoal não interfere, a gente não precisa saber da sua vida pessoal’ e isso não existe! A maternidade faz parte da minha carreira, ela influenciou como minha carreira foi desenvolvida e as pausas que eu tive em relação às licenças dos meus filhos estão lá muito claras no meu currículo. E, mesmo que as informações da minha licença não estivessem lá, dá para ver quando ela aconteceu por conta da produtividade.

 

Mas sozinha, a informação da licença-maternidade não faz diferença. Então, eu acho que o principal ganho que a gente teve em termos de políticas foi a consideração da maternidade nos processos que vão desde o ingresso na pós-graduação – hoje, a gente tem vários cursos de pós-graduação que consideram a maternidade quando estão fazendo processos seletivos, além de agências de fomento e concursos públicos.

 

Mas, estamos longe do ideal! A gente tem problemas de base ainda muito sérios, como as alunas sejam de graduação ou pós-graduação que não têm direito à licença-maternidade. As pessoas confundem a lei dos exercícios domiciliares, que dá por três meses o direito do desenvolvimento de atividades domiciliares, com a licença – mas isso não é licença. Existe um projeto de lei aprovado no senado e que está na Câmara agora, que incentiva a participação das mulheres na ciência e um dos pontos desse projeto é a licença-maternidade para alunas. Isso é muito importante, porque fica claro na lei que esse período de afastamento que a aluna vai demorar a concluir o seu curso não influencia as avaliações dos cursos e dos programas.

 

6. Como você entende a parentalidade e as diversidades que o conceito pode incluir?

A razão do movimento ter seu nome em inglês é porque a gente não queria associar à gênero. Sempre foi muito claro que, enquanto sociedade, não podemos ver o cuidado com os filhos como uma função exclusiva da mulher. A gente sempre fala do absurdo que é ter cinco dias de licença-paternidade no Brasil, prorrogando até 20 dias em alguns casos. Isso reforça o viés do cuidado, porque o que a gente está dizendo é que nasceu uma criança e quem vai ficar dentro de casa cuidando é a mãe.

 

A questão da diversidade é que família hoje não é um pai e uma mamãe, família são aquelas pessoas que se uniram e estão criando um filho, seja lá quem forem. Mas a gente vive numa sociedade em que quem cuida dos filhos é a mãe. Os dados no mundo todo mostram que o impacto está na mãe, porque ela ainda é responsável pelo cuidado, seja por algum tipo de imposição ou porque são mães solo. 

 

Por outro lado, a gente tem problemas de legislação ligadas às questões da sexualidade. Recebemos muitos relatos de casais homoafetivos, compartilhando que somente uma pessoa tem direito à licença – especialmente as mulheres, quando só uma tem direito à licença-maternidade e a outra não tem nada ou, às vezes, apenas o equivalente aos cinco dias de licença-paternidade. Enfim, temos muitos problemas quando falamos na parentalidade pensando em diversidade, principalmente em relação às políticas públicas.

 

7. Por fim, como a parentalidade pode contribuir para a produção acadêmica? 

É importante ressaltar que todos os problemas falados aqui não são da parentalidade. Eles são do sistema que estamos inseridos. Então, a parentalidade não traz dificuldades, o que ela traz é uma mudança e o nosso sistema não está acostumado a isso. O sistema acadêmico foi desenvolvido para um perfil muito específico. Por muito tempo, quem esteve dentro da academia tinha alguém em casa cuidando de todos os outros aspectos da vida. 

 

Quando a gente está discutindo a questão da parentalidade e a questão de gênero na ciência, a gente está falando de alguns pontos inseridos num contexto maior que é a diversidade, que é essencial para a excelência na ciência. Se eu tenho um grupo homogêneo de pessoas pensando um problema, a resposta que eu vou ter será homogênea. Então, eu preciso de visões diferentes. 

 

E existe uma mudança muito drástica em como a gente enxerga as coisas depois que a gente tem filhos e isso vai desenvolver uma série de características ligadas às soft skills: a questão da empatia, a questão da objetividade no sentido de planejamento, a gestão de tempo, ser capaz de fazer diferente coisas de uma outra maneira. Então, a diversidade é extremamente positiva, porque ela vai trazer um conjunto de qualidades que vão ser desenvolvidas e que vão fazer com que a gente tenha um desenvolvimento da academia e da ciência muito melhor.

 

Assista o bate-papo na íntegra aqui.