ePrivacy and GPDR Cookie Consent by Cookie Consent Instituto REDI
  • Caderno REDI

Parentalidade: Contexto e aspectos da jornada escolar e acadêmica de jovens em comunidades rurais

  • sexta, 01 de julho de 2022

A realidade das jovens do campo possui particularidades e a complexidade de uma colcha de retalhos que reúne aspectos sociais, econômicos e, principalmente, culturais, cercada pela insegurança financeira, falta de acesso a informação e educação, falta de oportunidades e infraestrutura, investimento em políticas públicas contextualizada, entre outros.

 

Sendo o campo/ o rural visto, ainda, por muitos como um lugar de “atraso” e não desenvolvido, devido a visão equivocada de que a atividade agrícola é algo primitivo e não necessita de investimentos, tão como que, para ser agricultor (a) não se necessita de estudos (PUNTEL et. al, 2011; FERREIRA, 2017). 

 

Dentre os aspectos mencionados, a questão cultural chama atenção por reunir um conjunto de costumes, saberes e crenças tradicionais que são transmitidos entre as gerações, influenciando diretamente na formação do “ser”, na personalidade, nos valores, nas práticas e atividades do dia a dia no campo.

 

Toda criança, filha de camponeses, cresce em contato com a natureza, aprendem o caminho do roçado e os segredos do cultivar a terra, da produção de alimentos (macaxeira, feijão, frutas, hortaliças, milho, entre outros). Na maioria das vezes, o adolescente vai aprendendo com o pai a ser um bom trabalhador para manter a família e a adolescente vai aprendendo com a mãe a ser uma boa dona de casa, uma boa esposa e uma boa mãe.

 

Em uma determinada fase, os jovens vivem o dilemas de conquistar sua autonomia ou ficar trabalhando com os pais, de se profissionalizar ou casar e constituir família, neste sentido as mulheres ainda são colocadas em um lugar de restrições, “o lugar do cuidar”, em um conjunto de atividades historicamente e culturalmente tido como de mulher(SANTOS et al., 2020), bem como, com o dogma do “isso ou aquilo não convém a uma moça/mulher de família”. 

 

Padrão que vem se transformando e ganhando um caráter plural de “juventudes” que mantém os vínculos afetivos de pertencimento ao lugar e sua cultura de origem, mas buscam novos horizontes de maior qualidade de vida, se profissionalizando e assumindo o protagonismo em suas jornadas e na vida da comunidade. Incentivados pelos pais ou pelo sonho de ter uma profissão, ou ainda, motivados pelas necessidades e demandas familiares e do lugar onde residem.

 

A maneira como os pais “criam”, conduzem o processo de educação e se relacionam com os filhos pode impactar de maneira positiva ou negativa na vida destes, influenciando diretamente em seus comportamentos, decisões e ações. Este processo conhecido como parentalidade é descrito por Barroso e Machado (2010) como a missão que uma geração (dos pais) tem de preparar uma segunda geração (os filhos) para situação físicas, econômicas e psicossociais que iram encontrar ao longo de sua vida, por meio de um conjunto de atividades propositais que assegure o desenvolvimento e a sobrevivência da criança em ambiente seguro. 

 

Buscando compreender a relação da parentalidade e sua influência na vida escolar e acadêmica, bem como, na construção da autonomia e equidade de gênero de jovens em comunidades rurais foram convidadas cinco jovens, com idades entre 20 e 29 anos, para uma conversa individual sobre o tema. 

 

As jovens residem na comunidade de assentados da Reforma Agrária, Assentamento Novo Salvador, município de Jacaraú, localizado na Mata Norte paraibana, e concluíram ou ainda estão cursando os cursos de Pedagogia, Ecologia e Secretariado Bilíngue na Universidade Federal da Paraíba, e Gestão Pública em uma universidade particular.

 

As conversas tiveram início com uma breve discussão sobre a parentalidade e participação na vida escolar do ensino fundamental e médio, conforme relatos:    

 

[...] Meus pais sempre me incentivaram a estudar para ter uma profissão melhor, ajudava no roçado também e ajudo até hoje, mais meus pais, e principalmente minha mãe, sempre me aconselharam a estudar para ter mais conhecimento e ter uma vida melhor... me ajudavam nas tarefas dentro das suas possibilidades. [...]. Maria Luciene, 29 anos, 2022.

 

[...] Eles (os pais) sempre nos incentivaram muito, acho que tem aquela questão de quando se é “agricultor e pobre” a única coisa que eu tenho para lhe oferecer é o estudo, então aqui em casa sempre teve bastante incentivo... meus pais sempre foram presentes, mais minha mãe, tem a questão de ser mãe, né? Então ela estava mais presente ... e me incentivava mais, mas meu pai sempre participou [...]. Ester Tavares, 21 anos, 2022.

 

[...] Estudar aqui em casa sempre foi uma prioridade para a minha mãe... mamãe sempre falou que ela tinha o compromisso com a gente na escola até o ensino médio... por ser muito atarefada ela nunca teve muito tempo de participar da vida escolar, sempre nos aconselhou a aprender e se comportar direitinho e se preocupava com as notas e o que as professoras diziam a nosso respeito [...]. M. B., 29 anos, 2022.

 

[...] A educação que os pais dão aos filhos é fundamental, minha mãe foi fundamental na minha formação, sempre me ensinado com as atividades mesmo e aconselhando a estudar, ela exerceu muito bem o papel de pai e mãe [...]. Miriam M. Vieira, 20 anos, 2022.

 

[...] Aqui em casa sempre foram os dois que ajudaram a gente, meu pai sempre ia me levar e buscar de moto... não ajudava muito nas tarefas porque eles não têm muito estudos, então quando eles não sabiam, procuravam alguém para ajudar [...]. Gabriele R. da Silva, 22 anos, 2022.

 

Observa-se, nos depoimentos, dois pontos relevantes: o reconhecimento da importância da educação, por parte dos pais, na vida das crianças e jovens, motivados, principalmente, pelo desejo de que as filhas tenham uma vida, um futuro melhor; e o reconhecimento, por parte das filhas, da importância do apoio dos pais e sua presença na vida escolar, sobre tudo das mães, cabendo destacar que duas das colaboradores foram criadas apenas pela mãe e externalizam o orgulho que tem das mesmas. Para a colaboradora Maria Luciene a maior presença materna se dá devido ao fato da existência de uma maior intimidade e por também ser mulher conversa e aconselha mais.

 

No que se refere a vida acadêmica, nota-se que o apoio relatado pelas colaboradoras se estende ao ingresso e permanência na universidade, sendo um incentivo para enfrentar os desafios e não desistir, conforme relatos:

 

[...] Eu comecei a trabalhar e casa de família para ajudar em casa e porque eu queria estudar, como eu não consegui passar pelo ENEM, queria poder pagar minha universidade particular....meu maior desafio foi trabalhar e estudar, lembro que precisei sair de um emprego, porque a patroa não quis me liberar no horário da aula, e minha sempre me achocalhando me apoiando, eu aprendi o ela a lutar e não desistir e hoje treinei o curso e estou na especialização[...]. Maria Luciene, 29 anos, 2022. 

 

[...] Na minha família eu fui a primeira a começar a universidade ... meus pais me aconselhou muito a ter cuidado com as amizades com o local do campus, por ser afastado, e a se envolver com as coisas e os projetos que ajudam o nosso currículo... aqui em casa quando falei que passei foi todo mundo pulando e feliz porque é o que eles sempre incentivaram, quando a gente conseguiu o orgulho foi lá pra cima ... aqui em casa todos sempre fizeram tudo e quando da hora de ir estudar ao fazer alguma atividade relacionada aos estudos, para tudo e vai,, nossa educação sempre foi uma prioridade para eles (os pais)[...]. Ester Tavares, 21 anos, 2022. 

 

[...] Meus pais ficaram muito felizes quando eu passei para universidade, ele tem orgulho, porque sou a primeira da família a fazer uma universidade, sabe? ... aqui em casa éramos três mulheres então os afazeres eram divididos, depois que meus pais se separaram e minha irmã casou as vezes me sinto sobrecarregada, também cuido da minha sobrinha, mas o maior desafio é o transporte, meu pai me leva e vai me buscar todo dia lá na pista ( onde o ônibus da prefeitura passa) vejo que isso é muito cansativo para ele, então quando penso em desistir eu olho para o esforço dele esses anos todos [...]. Gabriele R. da Silva, 22 anos, 2022.

 

De acordo com os relatos, dentre os desafios, o transporte para a escola e para a universidade é o principal, devido a necessidade de se deslocar para outras comunidades ou para a cidade e outros municípios, no caso da universidade. O que também está relacionado a fatores estruturais como a falta de escola na comunidade em que residem e condições das estradas, uma vez que quando chove os ônibus não conseguem chegar às comunidades.

 

 A divisão do trabalho doméstico e agrícola, e em alguns casos a necessidade de contribuir com a renda familiar, não foi considerado pelas colaboradoras um desafio potencial para desistência. Nota- se que as mesmas fazem parte de uma estrutura familiar com uma dinâmica que não corresponde à realidade da totalidade das jovens na comunidade, conforme relatado por Ester Tavares de 21 anos:

 

[...] a realidade é bem diferente da que eu vivo aqui em casa, temos amigos, a gente conversa muito sobre isso, as vezes tem trabalhos (da universidade), muitas tem que terminar primeiro as atividades em casa para poder fazer, a diferença é bem considerável, nem todas tem o mesmo apoio tão significativo quanto a gente tem aqui em casa ... por ser do sítio, do assentamento tem que trabalhar, ir para o roçado acabam deixando o estudo de em segundo plano e não conseguem entrar na universidade, muitos não conseguem terminar o ensino médio, então quando a gente tem o incentivo em casa a gente se motiva a ir mais atrás e não desistir [...]. Ester Tavares, 21 anos, 2022.

 

Diante dos relatos, da realidade socioeconômica e política, e principalmente da complexidade que envolve o tema da parentalidade, nota-se que a participação dos pais na vida das participantes tem sido positiva, sobretudo no sentido de conduzir e viabilizar a formação das jovens, gerando e nutrindo o sonho da realização acadêmica e profissional que as mesmas almejam, um sonho compartilhado pela família. Sendo a parentalidade multidimensional, a presença da família, o apoio e incentivo dos pais se configurou um elemento importante frente aos desafios estruturais e econômicos.

 

Embora a realidade das participantes não corresponda à totalidade das jovens do campo, são peças chaves, mudam a realidade local e inspiram outras jovens, contribuindo significativamente na construção do “novo rural” descrito por Puntel et al. (2011), onde se expõe, que para além de contribuir com a segurança e soberania alimentar com a produção de alimentos, o campo precisa de profissionais e investimentos, sendo o ambiente que tem médicos, professores, enfermeiros, agrônomos, veterinários, entre outros profissionais, que são filhos de agricultores. E por que não agricultoras (os) também?     

 

Gostaria de finalizar com o recadinho da pedagoga e estudante de especialização em Coordenação Pedagógica e Supervisão Escolar, Maria Luciene de 29 anos e agradecendo a todas as protagonistas que compartilharam suas histórias e disponibilizaram um pouco do seu tempo para construção deste texto: 

 

Gostaria de falar da importância da participação dos pais, acompanhar seus filhos na escola, porque isso faz parte e ajuda no desenvolvimento da criança, porque quando os pais participam da vida escolar de seus filhos, dão incentivo, ajuda muito nas escolhas, nas decisões que os filhos vão tomar quando crescer, no que eles vão querer para a vida deles... a presença dos pais reflete muito na vida e no futuro dos filhos. Maria Luciene, 29 anos, 2022. 

 


Autora Marilene Vieira Barbosa

Membra da equipe de Comunicação Científica do Instituto REDI. É natural de Esperança - PB, reside na Comunidade As. Novo Salvador, Jacaraú - PB. Mestra em Desenvolvimento e Meio Ambiente - UFPE, Bacharel em Ecologia - UFPB, Técnica em Agropecuária - IFPB.


 

Referências

BARROSO, Ricardo G.; MACHADO, Carla. Definições, dimensões e determinantes da parentalidade. Impressa da Universidade de Coimbra, 2010.

FERREIRA, Joana Isabel Paiva. Ser jovem em tempos de mudança: representação dos jovens sobre a vivência da parentalidade. 2017. Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/108438/2/226803.pdf 

PUNTEL, Augusto; PAIVA, Águedo Nagel; RAMOS, Marília Patta. Situação e Perspectivas de Jovens Rurais no Campo. 2011. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/code2011/chamada2011/pdf/area3/area3-artigo20.pdf 

SANTOS, Luana Cândido Dos; COSTA, Ana Márcia Moura da; BOARBOSA, Marilene Vieira; CORDEIRO, Itamar José Dias. “Dos municípios interioranos às Universidades Públicas Federais: perspectivas e desafios enfrentados por mulheres na busca da educação superior”. Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, 2020.