A cada 26 horas um LGBTI+ é assassinado ou se suicida vítima da LGBTfobia, conforme relatório de mortes do Grupo Gay da Bahia.
Ainda, segundo o relatório de 2019, embora tenha havido uma redução quanto ao número de mortes se comparado a anos anteriores, 329 LGBT+ foram as vítimas de morte violenta no Brasil em 2019, sendo 297 homicídios (90,3%) e 32 suicídios (9,8%) e, em termos absolutos predominaram as mortes de 174 Gays (52,8%), seguidos de 118 Travestis e Transexuais (35,8%), 32 Lésbicas (9,7%) e 5 bissexuais (1,5%).
Sim, caros leitores. São dados absurdos, insolentes e deploráveis, sem dúvida.
Mas, afinal de contas, onde ficam os direitos dos transgêneros no Brasil?
Sabemos que a Constituição Federal Brasileira de 1988 prevê direitos fundamentais à pessoa humana, como dignidade, igualdade e liberdade. A Carta Magna Brasileira prevê expressamente que todos são iguais perante a lei.
Sabemos também que esses direitos não são respeitados em sua totalidade quando o assunto é a transexualidade e travestismo, até mesmo em razão da dificuldade de execução de políticas públicas.
Apesar disso, alguns avanços ocorreram no Direito Brasileiro recentemente e precisamos nos atentar para forçar a execução dessas normas e precedentes.
Um dos principais temas discutidos quanto aos direitos dos trânsgeneros, por exemplo, se dava sobre a possibilidade de alteração do nome no Registro Civil.
Ora, o nome civil é um direito da personalidade e, como tal, é condição para que uma pessoa possa exercer seus direitos e cobrar seus deveres. No entanto, em razão do conservadorismo e da rigidez da lei brasileira, inúmeras ações surgiam no Judiciário para pedidos de alteração de nome de transexuais e travestis.
Todavia, em abril de 2016, com a publicação do Decreto Federal n. 8.727, reconheceu-se o direito ao uso de nome social no âmbito da administração pública, ficando vedado o uso de expressões pejorativas e discriminatórias a travestis e transexuais.
Inclusive, conforme artigo 6º deste mesmo Decreto “a pessoa travesti ou transexual poderá requerer, a qualquer tempo, a inclusão de seu nome social em documentos oficiais e nos registros dos sistemas de informação, de cadastros, de programas, de serviços, de fichas, de formulários, de prontuários e congêneres dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.”
Além disso, em março de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275, reconheceu o direito do transgênero à requalificação civil (possibilidade de alteração de nome e gênero na certidão de nascimento) administrativa, ou seja, perante o próprio Cartório de Registro Civil mediante simples declaração de vontade, o que antes somente era possível mediante uso da via judicial.
Tal direito foi assertivamente confirmado pelo Tema 761 da Repercussão Geral do STF, que declarou: “o transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa”.
Outrossim, em relação à saúde, em 2019 foi publicada a Resolução nº 2.265 do Ministério da Saúde, determinando que atenção integral à saúde do transgênero deve contemplar todas as suas necessidades, garantindo o acesso, sem qualquer tipo de discriminação, às atenções básica, especializada e de urgência e emergência.
Também em 2019, na Ação de Inconstitucionalidade Direta por Omissão, foi reconhecida pelo STF a criminalização da homofobia e transfobia. Segundo o STF, práticas homofóbicas e transfóbicas configuram atos delituosos passíveis de repressão penal, como racismo e discriminação. Para tal conduta, é possível punir o infrator com pena de 01 a 03 anos de prisão, sendo o crime considerado inafiançável e imprescritível.
Ainda, em outro caso, o STF, em recentíssima decisão (março de 2021), definiu que mulheres transexuais e travestis femininas poderão escolher se desejam cumprir penas a que sejam condenadas em presídios femininos ou masculinos (ADPF 527).
Nos Tribunais Estaduais, a despeito da ausência de legislação específica, temos decisões interessantes a serem observadas em relação aos direitos dos transgêneros.
Recentemente, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por exemplo, condenou um hospital ao pagamento de danos morais em virtude de confusão gerada por utilização do nome civil da pessoa transexual em seu prontuário médico, ao invés do uso do nome social. (Apelação Cível, Nº 70083614735, Tribunal de Justiça do RS, Julgado em: 15-04-2020).
Também o Tribunal de São Paulo condenou em danos morais um indivíduo em razão de ofensas de cunho sexual perpetradas contra a honra e reputação de um transgênero divulgadas por meio de aplicativo de mensagens (Whatsapp). (TJSP; Apelação Cível 1005838-68.2019.8.26.0024; Data do Julgamento: 11/02/2021).
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) também por algumas vezes já reconheceu o direito de transexuais e travestis, como caso em que houve uso indevido de imagem de um transexual em programa televisivo para crítica religiosa. Nessa decisão, o TJMG assim entendeu: “Houve falha da apelante, pois extravasou o direito de informar para introduzir o vídeo do apelado em um contexto de crenças, reprovação e de exclusão, sem autorização.” (TJMG, Apelação Cível 1.0000.19.054264-7/001).
É claro que há inúmeras lacunas legais quanto aos direitos dos transgêneros, como quanto ao uso de banheiro público, participação em competições esportivas e até quanto a reflexos quanto ao direito de aposentadoria.
Além disso, ainda, quando se fala na execução de políticas públicas, devemos reconhecer a dificuldade de travestis e transexuais em observar o cumprimento prático de normas jurídicas e entendimentos perpetrados pelo Poder Judiciário Brasileiro.
Todavia, é importante que conheçam seus direitos já reconhecidos para que possam cobrar sua aplicação.
Sabemos que a luta é árdua, mas não é permitido desistir. Não é possível desistir quando sabemos o quanto estamos certos.
E, finalizando, trazemos aqui uma reflexão: “mudar o mundo, meu amigo Sancho, não é loucura, não é utopia, é justiça”. (Dom Quixote, Miguel de Cervantes).
Autora
Fernanda Souto - Diretora de Assuntos Jurídicos
Referências:
Dom Quixote [recurso digital]: volumes 1e2 / Miguel de Cervantes; Tradução Almir de Andrade e Milton Amado; Edição ilustrada por Gustavo Doré - 2 ed. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017
Mortes violentas de LGBT+ no Brasil – 2019: Relatório do Grupo Gay da Bahia/ José Marcelo Domingos de Oliveira; Luiz Mott. – 1. ed. – Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI N. 4.275. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=371085. Acesso em: 15.03.2021
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 761. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4192182&numeroProcesso=670422&classeProcesso=RE&numeroTema=761. Acesso em: 15.03.2021
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADO N. 26. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4515053. Acesso em: 15.03.2021
BRASIL. Decreto Federal n. 8.727, de 28 de abril de 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/d8727.htm. Acesso em: 15.03.2021
BRASIL. Resolução nº 2.265 do Ministério da Saúde. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-n-2.265-de-20-de-setembro-de-2019-237203294. Acesso em: 15.03.2021
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível 100001905426470012019730391. Disponível em: https://www4.tjmg.jus.br/juridico/sf/proc_resultado2.jsp?tipoPesquisa2=1&txtProcesso=10000190542647001&nomePessoa=&tipoPessoa=X&naturezaProcesso=0&situacaoParte=X&codigoOAB2=&tipoOAB=N&ufOAB=MG&numero=20&select=1&listaProcessos=10000190542647001&tipoConsulta=1&natureza=0&ativoBaixado=X&comrCodigo=0024. Acesso em: 15.03.2021.
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