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Diário da luta indigena - a história de Títi na UFSM

  • quarta, 05 de outubro de 2022

Meu nome é Roseni Mariano, sou da etnia guarani M'bya, Tenente Portela, Terra Indígena Guarita, Rio Grande do Sul.

 

Sou estudante de Odontologia, 9° semestre na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Sou mãe, sou dona de casa, sou esposa, sou militante e sou mulher, sou filha de pai guarani e mãe kaingang.

 

Minha trajetória acadêmica se deu em 2014, quando decidi cursar ou tentar uma graduação, que "doideira se eu soubesse o que seria, não sei se teria a coragem de embarcar nessa aventura". Passei no curso de matemática, cursei três semestres. Foram três semestres de muito aprendizado, semestres de pareceram três décadas: passei fome, não tinha dinheiro, tinha que pagar o RU (restaurante universitário), meus familiares não me apoiaram na época, meu esposo machista e ciumento. Esses momentos foram extremamente importantes para que eu me descobrisse guerreira, forte. 

 

Comecei, juntamente com outros colegas indígenas, a participar de mobilizações e percebemos que teríamos que reverter nossas dificuldades quanto ao acesso e, principalmente, à permanência de alguma forma para que pudéssemos sobreviver a tudo aquilo que era novo, a tudo que estava sendo diferente.

 

Nessa época conheci lideranças que tenho pra mim até hoje como referências de luta e resistência: Natanel Claudino, e principalmente, o Augusto Ope da Silva, que já ancestralizou e que tive uma conversa curta apenas uma vez, mas que foi o suficiente para que me fortalecesse e me fizesse entender que era necessário eu, juntamente com outros indígenas, lutar, resistir pra sobreviver e permanecer firmes nessa caminhada que escolhemos.

 

No mesmo ano, participamos de uma mobilização estudantil na UFSM, propondo a construção da moradia específica para estudantes indígenas, para que alunos que viessem não tivessem que passar pelo que outros alunos passaram (dificuldades em acessar um espaço digno para estudar, dormir e realizar suas atividades). Para que esta discussão fosse iniciada, alunos anteriores ao ano de 2014 tiveram que "invadir" um apê no bloco 46 da moradia estudantil, porque não tinha nada de específico que garantisse a permanência do aluno indígena na instituição. 

 

Nesse ano, houve a ocupação total da reitoria. Alunos indígenas e alunos não indígenas ocuparam por três dias e duas noites, e após os três dias, fomos recebidos. O senhor reitor chamou os alunos indígenas, juntamente com o cacique Natanael, para dialogar. Fomos o primeiro coletivo a ser chamado e isso causou, digamos, um desconforto entre os coletivos indígenas e outros coletivos da UFSM. Começamos a ser xingados, ofendidos, enfim, saiu até nas mídias coisas totalmente fora do contexto. Mas o diálogo trouxe novas esperanças, como a aprovação da construção da moradia indigena. Foi motivo de muita alegria para todas as nossas lideranças, como base que fortalece, e para nós alunos que seriam os beneficiários diretos da luta.

 

Tenho muito orgulho e muita alegria de ter feito parte dessa conquista, de ter ocupado a reitoria. Fiquei triste, porque fui reprovada por falta nas disciplinas, mas feliz de ter essa história de luta e resistência para contar para outras pessoas e, principalmente, de um dia meus filhões contarem e se orgulharem de sua mãe.

 

Em 2015 decidi trocar de curso e passei em Odontologia. Acabei trancando o semestre por falta de "incentivo" do marido (ciúmes...), mas no 1º semestre de 2016 nós dois e nosso filho, nos mudamos para Santa Maria para tentarmos mudar a nossa vida, e numa perspectiva de um dia retornarmos para nossa aldeia e assim contribuir e ajudar nossa comunidade.

 

Quando cheguei na universidade, estava  com aquela ansiedade. As expectativas e os deslumbramentos logo deram lugar para angústia, decepção, medo de tudo aquilo que achei que eram flores.

 

A odontologia hoje para mim é o meu segundo amor depois do meu filho, mas no início era tudo aquilo que eu não queria ter: era choro de não entender as palavras, de nao ser aceita pelos colegas, de ser a mais velha da turma (uma turma de elite), de ver olhares de pena.

 

A dúvida chegou até mim, com perguntas "O que é que eu estou fazendo aqui?". Quando chegava em casa, as lágrimas caíam, mas tinha para mim que tudo era passageiro. Queria que tudo fosse rápido, mas no dia a dia, parecia que os obstáculos só aumentavam e eu não sabia ao certo se tinha forças para aguentar tudo. A pressão de ser mulher, da mãe que tinha que sair correndo das aulas para dar banho e alimentar o filho para ele ir na aula, de ser esposa, de superar sempre de cabeça erguida os xingamentos, as agressões físicas e verbais, de ser militante, de ser aluna. Tudo tão difícil. Mas eu olhava para mim e encontrava alguém que mesmo com toda dificuldade é alguém forte. Hoje, eu não sei o significado do ser "forte", apenas sei que eu sou. Seria força meu nome. Pois olho para trás… tanta chuva que peguei na ida para aula e na volta, tanto sol que queimava a pele, semestre sem dinheiro para comprar meus materiais, quantas lágrimas, como foi que eu passei por tudo isso?

 

Seria por que meu nome deveria ser força? Ou porque Nhanderu jamais me abandonou?

 

Hoje quase formando… meus passos foram guiados sim por alguém que me ergueu quando caí, mas que não me deixou desistir. Escrevi minha história na UFSM, mas não quero reconhecimento, quero apenas que nós povos indígenas sejamos respeitados. A universidade é sim um território indigena, que novas "Títis" venham para que possam seguir nessa caminhada de construção, resistência e sobrevivência. 

 

Roseni Mariano - Títi